Caderno Crítico

Thursday, March 30, 2006

Do Relativismo por Fernando Savater

(...) "Quando nos pomos a raciocinar torna-se impossível (e sem dúvida indesejável) negar a importância dos nossos condicionamentos socioculturais ou psicológicos mas... poder-se-á garantir que invalidem completamente o alcance universal de algumas verdades atingidas a partir delas e apesar deles? As descobertas científicas da única mulher que ganhou o Prémio Nobel, Madame Curie, são válidos só para as senhoras e não também para os homens? Deverão os japoneses do século XX desconfiar do valor que para eles tem a lei da gravidade descoberta por um inglês emperucado do séxculo XVII chamado Newton? Ter-se-ão enganado os nossos antepassados renascentistas europeus ao mudar a numeração romana, tão própria da sua identidade cultural, pelos muito mais operativos algarismos árabes? Os indígenas peruanos que descobriram as propriedades febrífugas da quinina séculos antes dos europeus, utilizaram uma lógica e uma observação experimental muito diferentes das nossas? O facto indubitável de Marx pertencer à pequena burguesia, invalida a sua análise sobre o proletariado? Deveria Martin Luther King, por ser negro, ter renunciado a reclamar os direitos de cidadania iguais para todos, estabelecidos pelos pais fundadores da Constituição dos Estados Unidos, que eram todos sem excepção brancos? Por fim: é uma verdade racional universal e objectiva a de que não existem ou não podem ser atingidas pelos humanos as verdades universais racionalmente objectivas? Parece evidente que o peso dos condicionamentos subjectivos varia muito conforme o «campo da verdade» que em cada caso estivermos a considerar: se falarmos da mitologia, de gastronomia ou de expressão poética, o peso da nossa cultura ou da nossa idiossincrasia pessoal é muito mais concludente que quando nos refermos às ciências da natureza ou aos princípios da convivência humana. Seja como for, e para verificar até que ponto os nossos conhecimentos estão imbuídos de subjectivismo necessitamos de um ponto de vista objectivo a partir do qual possamos compará-los uns com os outros...e todos com uma certa realidade independente deles a que se referem! Enfim, até para desconfiar dos critérios universais da razão e da verdade precisamos de alguma coisa como uma razão e uma verdade que sirvam de critério universal. No entanto, o contributo mais valioso do relativismo consiste em sublinhar a impossibilidade de estabelecer uma fonte última e absoluta, da qual provenha todo o conhecimento verdadeiro. E isso não se deve ás insuficiências acidentais da nossa sabedoria que o progresso científico poderia remediar, mas à própria natureza da nossa capacidade de conhecer. Talvez por isso um teórico importante do nosso século, Karl R. Popper, tenha insistido em que não existe nenhum critério para estabelecer que se atingiu a verdade, sem deixar ao mesmo tempo de conservar para a epistemologia um critério último e definitivo dae verdade (a noção tarskiana da verdade). A única coisa que está ao nosso alcance na maioria dos casos, segundo Popper, é descobrir os sucessivos erros que existem nos nossos posicionamentos e purificar-nos deles. Deste modo, a tarefa da razão acaba por se mostrar bem mais negativa (assinalar os múltiplos equívocos e inconsistências no nosso saber) que afirmativa (estabelecer a autoridade definitiva da qual provém toda a verdade)."

in As Perguntas da Vida por Fernando Savater
Fernando Savater é catedrático de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid, autor de mais de quarenta livros de ensaio, narração e teatro.

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